Nobel premia
três mulheres em 2018
Somam 5% dos
vencedores desde 1901
Arte: Fernanda Garrafiel/G1
Após
os anúncios das mais recentes premiações
do Nobel, feitos neste mês em cinco categorias, a
presença feminina no prêmio continua pequena: 5,6%. Das 904 pessoas premiadas
desde 1901, apenas 51 são mulheres. O G1 conversou com especialistas
para entender por que as mulheres aparecem tão pouco, os avanços que foram
feitos e se há perspectivas de melhora.
A física tem o pior índice de vencedoras:
1%. Apenas três mulheres ganharam o prêmio desde 1901. Antes de a canadense Donna Strickland vencer neste ano, a última mulher a ser premiada foi em 1963 — há nada
menos que 55 anos. Antes disso, o tempo entre uma mulher e outra ganhar foi
ainda maior: seis décadas. Marie Curie venceu em 1903.
Para
a professora Marcia Barbosa, do Instituto de Física da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), as dificuldades para aumentar esse número têm origem
ainda na infância.
“Quando você pensa em física, pensa em
experimentação. As meninas, na infância, não têm brinquedos de experimentação.
Os meninos têm." - Marcia Barbosa,
da UFRGS
"No
caso da física teórica, a gente associa àquela superinteligência. Um estudo
feito em Princeton mostrou que as meninas, aos sete anos, já acham que elas não
são inteligentes”, afirma. “Nós as elogiamos por fazerem coisas caprichosas,
bonitinhas. Utiliza-se a beleza como instrumento de elogio, mas nunca a
inteligência”, afirma.
Outro
fator citado pela cientista como contribuinte para o pequeno número de mulheres
em premiações como o Nobel, especialmente na física, é o chamado "efeito
tesoura": o número de mulheres em carreiras de exatas vai diminuindo à
medida que o nível de pesquisa se torna mais complexo.
Vencedoras do Nobel em física: Marie Curie (à
esq.), Maria Goeppert Mayer (topo) e Donna Strickland — Foto: Donna Strickland:
Universidade de Waterloo; Marie Curie: domínio público; Maria Goeppert Mayer:
Fundação Nobel | Arte: G1
Das
três mulheres que ganharam o Nobel em física, nenhuma o fez sozinha: os prêmios
foram divididos, em todas as ocasiões, com outros dois cientistas. Barbosa
acredita que, hoje em dia, eles dificilmente irão para somente uma pessoa.
“A
ciência é feita muito mais coletivamente hoje. No caso da Marie Curie, o casal
[Marie e Pierre Curie] trabalhava junto, então era impossível não dividir. Para
a Maria Goeppert Mayer [vencedora em 1963], ela ganhar foi maravilhoso, porque
ela não tinha nem emprego. Trabalhava nos EUA, numa universidade, mas sem ser
formalmente professora; só virou depois de ganhar o Nobel."
"Além
disso, acho fantástico a Donna (Strickland) ter ganho, porque foi o trabalho
que ela fez durante o doutorado dela, e muitas vezes o estudante fica fora do
prêmio”, comenta. “O Nobel está conseguindo enxergar o papel do jovem estudante
como protagonista. No caso da Frances Arnold, em Química, ela compartilha, mas fica com metade. Ela ganhou
sozinha no tema dela,o outro tema é que foi dividido. É super protagonista”,
diz.
A
situação de Strickland é bem diferente da ocorrida, por exemplo, com a cientista
Rosalind Franklin, cujas contribuições para a descoberta da estrutura do DNA
não foram reconhecidas no Nobel de 1962. O comitê premiou, em vez disso, três
homens: Frances Crick, James Watson e Maurice Wilkins.
Química
Para
a vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e
professora do Instituto de Química da Unesp de Araraquara, Vanderlan Bolzani, a
vitória de Frances Arnold e Donna Strickland são motivos para comemorar, mas
ainda há muito potencial a ser desenvolvido.
“Toda
vez que você premia, está contribuindo para uma igualdade. Avançou, mas as
mulheres ainda são mal representadas. A maioria das mulheres cientistas
brasileiras são todas nível 2 no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, órgão de incentivo à pesquisa no Brasil). O nível 1A,
que é o top, tem muito poucas”, lembra.
Vencedoras do Nobel em Química. No topo:
Marie Curie (domínio público), Irène Joliot-Curie (Fundação Nobel), Dorothy
Crowfoot Hodgkin (Vladimir Vyatkin/AFP). Abaixo, Ada Yonath (Evgeny
Biyatov/AFP) e Frances Arnold (Heikki Saukkomaa/AFP). — Foto: Arte: G1
Bolzani
destaca que a maternidade também pode ser um fator limitante. “Isso é uma coisa
complicada. A maioria das mulheres que se tornam mães e cientistas e conseguem
conciliar têm um apoio familiar — mas sempre foi assim, a vida inteira. A Marie
Curie foi discriminada e teve um grande apoio da família”, lembra.
Apesar
das dificuldades, a vice-presidente da SBPC é otimista. “Meu neto hoje, com
quatro anos, vai ter uma cabeça diferente. As meninas e os meninos brincam das
mesmas brincadeiras, que estimulam o cérebro”, comenta a cientista.
Medicina
Primeiras seis vencedoras do Nobel de
Medicina: Gerty Theresa Cori (Fundação Nobel); Rosalyn Yalow (Fundação Nobel);
Barbara McClintock; Rita Levi-Montalcini; Gertrude B. Elion; Christiane
Nüsslein-Volhard — Foto: Fotos: Fundação Nobel, com exceção de Chrsitiane
Nüsslein-Vollhard (Jörg Carstensen/AFP) | Arte: G1
Das
três áreas das ciências naturais, a medicina é que a tem a maior porcentagem de
mulheres vencedoras. Mesmo assim, esse número só chega a 5% — 12 dos 216 vencedores.
Para Marcia Barbosa, da UFRGS, o número ligeiramente maior também tem suas
origens na infância.
“Os
brinquedos das meninas estão associados ao cuidado. Se a menina vai para a
ciência, vai para o cuidado”, explica. “Temos que fazer um trabalho lá atrás,
de que as crianças podem fazer o que elas quiserem, senão teremos as mulheres
todas em uma profissão e os homens em outras”, alerta.
Ela destaca, ainda, a aplicabilidade dos
prêmios deste ano, que premiou iniciativas que melhoram diretamente a vida das
pessoas — algo que está próximo das áreas onde as mulheres costumam ter mais
presença.
Últimas seis vencedoras do Nobel de Medicina:
Linda B. Buck; Françoise Barré-Sinoussi; Carol Greider; Elizabeth Blackburn;
May-Britt Moser e Youyou Tu. — Foto: Na ordem: Sven Nackstrand/AFP; Stephane de
Sakutin/AFP; Uwe Anspach/AFP; Fundação Nobel; A. Mahmoud/Fundação Nobel; Jin
Liwang/AP | Arte: G1
Barbosa
acredita que as premiações servem de estímulo a outras mulheres. “Quando temas
mais cotidianos são premiados, elas podem ver e pensar, ‘nossa, eu podia estar
ali’. E podia mesmo, é só se esforçar. Não é impossível”, conclui.
Economia
A
princípio, economia pode parecer a área em que as mulheres são pior
favorecidas: apenas uma levou a láurea — a americana Elinor Ostrom, em 2009. No
entanto, há um detalhe: o prêmio só foi criado em 1968, mais de seis décadas
depois das categorias pioneiras.
O
motivo, explica a economista Hildete Pereira de Melo, professora da
Universidade Federal Fluminense (UFF), é que a economia não era entendida como
ciência no começo do século. Considerados só os últimos 50 anos, economia e
física têm o mesmo número de ganhadoras mulheres. O índice na economia ainda é
um pouco mais alto: 1,23%.
Para
a economista Maria da Conceição Tavares, ex-professora da Universidade Estadual
de Campinas e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de ex-integrante
da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), o problema é o mesmo para
todas as chamadas ciências "duras", premiadas pelo Nobel.
"Há discriminação nos Nobéis contra as
mulheres, não é só na economia. De um modo geral a academia é muito pouco
permissiva às mulheres. Nas profissões duras não tem mulher. Há um preconceito
contra", afirma.
Para
Melo, a economia, assim como a ciência, é um espaço de poder, e masculino.
A americana Elinor Ostrom, única vencedora do
Nobel em Economia — Foto: Raveendran/AFP
"As
mulheres estão sempre presentes nas pesquisas, nos laboratórios, mas elas são
sempre uma figura invisível. O sucesso em economia passa pelo exercício do
poder. Se você pegar todos os grandes economistas, eles estiveram, uma hora ou
outra, no poder. Sobretudo abaixo do Equador. Abaixo do Equador, também,
ninguém ganha Nobel no mundo. Abaixo do Equador só ganha-se Nobel em Literatura
e de Paz — que é o que caracteriza os Nobéis femininos. Não são os Nobéis
científicos. Nessa disputa, as mulheres, a partir do movimento feminista dos
anos 70, vão aparecer mais. Ou você bota a boca no trombone ou nada muda",
afirma.
A
professora enxerga na maternidade uma das raízes para essa lacuna. "As
mulheres precisam ter exemplos para se verem. Porque você só se vê como mãe —
abnegada mãe. Por que é que as mulheres vão fazer a área de saúde? Porque as
mulheres são treinadas para cuidar das pessoas. Ninguém escolhe uma profissão
que não conhece", diz.
Maria
da Conceição Tavares é ainda mais contundente: "Eu acho que se não tivesse
passado pelas Nações Unidas, pela Cepal, eu não teria conseguido ser notória.
Só na profissão de professora de economia não daria, porque tem preconceito
contra as mulheres. Ou você tem alguma dúvida?”
Paz
Se
"botar a boca no trombone" é necessário para algo mudar, foi
exatamente isso o que fizeram as 17 ganhadoras do prêmio na categoria da paz,
que tem o maior índice de mulheres: 16%. A primeira vencedora, a baronesa
austríaca Bertha von Suttner, era amiga próxima de Alfred Nobel e realizou
diversos esforços pela paz no período pré-Primeira Guerra Mundial.
Nadia Murad e Malala Yousafzai, últimas
vencedoras do Nobel da Paz — Foto: Malala Yousafzai: David Himbert - Hans Lucas
- AFP; Nadia Murad: AP
Na premiação deste ano, a ativista iraquiana da minoria
yazidi Nadia Murad foi a vencedora. Sequestrada
e mantida como escrava sexual pelo Estado Islâmico, ela é uma das 3 mil meninas
da minoria étnicorreligiosa que sofreram estupros e outros abusos pelo grupo,
segundo estimativas do comitê do Nobel. A premiação considerou que ela e Denis
Mukwege, com quem dividiu o prêmio, "colocaram em risco sua segurança
pessoal combatendo crimes de guerra e buscando justiça para as vítimas."
Outras
vencedoras incluem Ellen Johnson Sirleaf, primeira líder de estado a ser
democraticamente eleita na África; Shirin Ebadi, primeira juíza mulher no Irã,
presa por criticar o sistema de governo do país; e Wangari Maathai, primeira
professora universitária mulher no Quênia e primeira mulher africana a receber
o prêmio na categoria da paz.
Literatura
Apenas
14 dos 114 vencedores do prêmio Nobel na categoria são mulheres: 12%. Para a
professora da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana
Mackenzie Marlise Vaz Bridi, especialista em literatura de autoria feminina,
uma das explicações é que as mulheres, por muito tempo, não tiveram acesso a
escolas e alfabetização.
"Durante
séculos muitas coisas foram escritas por mulheres que usavam nomes masculinos.
As mulheres demoraram para se pensar em todas as áreas, e na literatura não
seria diferente. Elas tiveram oportunidade de estudar e de serem alfabetizadas,
de escrevem, terem vida própria, muito tardiamente. As escolas eram para os
homens; as mulheres eram para os homens, para a casa, para a vida
privada", explica.
Já em
1929, a escritora britânica Virginia Woolf chegou a afirmar, no ensaio 'Um Teto
Todo Seu', que "arrisco-me a dizer que Anônimo, que escreveu tantos poemas
sem cantá-los, com frequência era uma mulher".
Vencedoras do Nobel em Literatura: (acima)
Selma Lagerlöf, Grazia Deledda, Sigrid Undset, Pearl Buck. Abaixo: Gabriela
Mistral, Nelly Sachs, Nadine Gordimer, Toni Morrison — Foto: Fotos: Fundação
Nobel. | Arte: G1
Bridi
cita, como exemplo desse temor em assinar o próprio nome, o caso da escritora
britânica J.K. Rowling, autora da série de livros 'Harry Potter', que utilizou
as iniciais, e não o nome completo, na capa dos livros — por orientação dos
próprios editores. O primeiro livro da série foi publicado em 1997, quase sete
décadas depois da frase de Woolf.
A
professora chama atenção, ainda, para o aspecto político da premiação. Apenas
uma escritora latinoamericana venceu o prêmio: a chilena Gabriela Mistral, em
1945. Abaixo da linha do Equador, somente uma outra foi laureada: a
sul-africana Nadine Gordimer, em 1991. "Nós somos a periferia do
mundo", afirma Bridi.
O
próprio comitê do Nobel reconheceu a necessidade de premiar autores fora das
fronteiras europeias. "Durante um longo tempo a Academia Sueca pôde, com
justiça, ser criticada por tornar o prêmio um negócio europeu", afirma a
organização em seu site.
Vencedoras do Nobel de Literatura: Wislawa
Szymborska, Elfriede Jelinek, Doris Lessing, Herta Müller, Alice Munro,
Svetlana Alexievich — Foto: Fotos (na ordem): Fundação Nobel (Wislawa
Szymborska, Elfriede Jelinek); Fundação Nobel/Universidade de Montana (Doris
Lessing, Herta Müller); J Munro/Fundação Nobel (Alice Munro); A.
Mahmoud/Fundação Nobel (S. Alexievich)
A
maior parte dos laureados entre 1901 e 2017 publicou obras em inglês: 29.
Francês aparece em segundo lugar, sendo a língua de 14 dos ganhadores; alemão é
o terceiro, com 13. O único vencedor a publicar em português foi José Saramago,
em 1998.
(Para calcular os percentuais em cada
categoria, o G1 considerou o número de láureas concedidas (908), e
não de indivíduos vencedores. As organizações não foram levadas em conta no
Nobel da Paz.)
Por
Lara Pinheiro, G1, Ciência e Saúde, 18/10/2018 16h44
Gratidão e reconhecimento a essas mulheres.
Leni